segunda-feira, 12 de outubro de 2009

[Selfish] Capítulo 1

Selfish

Kaline Bogard

A vista de cima da passarela era impressionante.  Ficar olhando o ir e vir de centenas de automóveis aquele horário chegava a dar tontura.  Principalmente quando estava olhando por tanto tempo quanto ele.


A culpa de ter chegado ao encontro tão cedo era da ansiedade.  Fazia um bom tempo que Shibuya não via Kuro san... alguns anos na verdade.  Sentia-se estranho, sem saber o que esperar, mesmo que no fundo ainda fosse como reencontrar um velho amigo.

– Yo. – a voz rouca chamou a atenção do baixista.  Jin voltou-se e encarou as profundas íris negras do antigo companheiro de aventuras, antes de responder:

– Yo. – tinham praticamente a mesma altura, podendo se fitar olhos nos olhos.

Foi o sinal para que Kuro se aproximasse.  O rapaz vestia uma regata preta sem estampas e calça jeans meio desbotada.  Os cabelos escuros caiam lisos pelo rosto magro e pálido.  Não havia nada que denunciasse que era mais alienado por mangas do que Ikeuchi.

Parando ao lado de Jin, o recém-chegado tirou uma mão do bolso para ajeitar o óculos de aro fino sobre o nariz:

– Você não mudou nada. – observou as roupas nada discretas que Shibuya vestia.

– Kuro san também não.

– Vamos para algum lugar?

– Akihabara?

– Não.  Vamos para o parque Ueno.  Sentar sob as sakuras... como nos velhos tempos...

Imagens da adolescência povoaram a mente de Shibuya.  Parecia uma época tão distante, aquele período mágico em que os números de contatos em seu celular tinham a incrível marca de seis registros.  Seis amigos.

– Nos velhos tempos? – suspirou.  Alguns haviam partido para sempre, outros apenas se afastado – Sem Mimi, Jure-chan, Neko-chan e Humiko san?

– É.  – deu de ombros – Os velhos tempos não voltam.  Esqueça o parque e as sakuras.

– Podemos só caminhar?

Kuro observou o baixista.  Sabia o que Jin estava fazendo: evitando sua companhia em um lugar muito deserto.  Por isso a sugestão de irem à Akiba.  Não porque o distrito fosse um lar para os otakus.  Mas porque lá havia uma multidão.  Lá era seguro.  Assim como o Parque Ueno era seguro nos velhos tempos, junto com os outros.

– Podemos andar se você quiser, Shibuya. – concordou com resignação.

Ikeuchi sorriu e ajeitou a mochila sobre os ombros antes de virar-se e começar a descer a passarela.  Fosse consciente ou não, Jin tomou o caminho que levava para Akihabara.  Caminhariam um bom tempo por aquele lado, contrário à estação.

– Ainda tem claustrofobia? – a pergunta de Kuro soou mais como uma afirmação.

Jin olhou para o rapaz ao seu lado:

– Hn. Gomen...

O outro deu de ombros.  Cansara de recomendar que o antigo colega procurasse ajuda profissional.  Se Jin queria viver com aquela fobia, não podia fazer nada.  Ao invés de insistir em um assunto tão complicado, preferiu questionar sobre o motivo daquela reunião:

– Porque pediu minha ajuda?

– Eu... eu... – Jin ficou sem saber como começar a conversa.

– Você... você...?

– Eu preciso de ajuda.

– Isso eu já sei.  Se meteu em alguma encrenca? – Kuro perguntou com as sobrancelhas franzidas de leve.

– Não!

– Então o que é? Não vim aqui pra brincar de adivinhação.

Ikeuchi respirou fundo.  Kuro era seis anos mais velho, e uma pessoa extremamente madura.  Porém tinha uma personalidade muito difícil.  Alias, aquela parecia uma marca na vida de Jin.  Algumas das pessoas mais próximas eram de difícil convivência.  Havia ainda seu meio-irmão e... Jack...

– Gomen... eu só preciso de um conselho.  Eu... to  afim de alguém... e ele também gosta de mim, mas...

– Você...? – o mais velho cortou – Gostando de alguém?  Alguém de verdade...?

A pergunta desconcertou Shibuya.  Porque todos tinham aquela reação quando revelava seus sentimentos?  Porque não podiam acreditar que ele estava amando uma pessoa, e não um personagem de manga?

Vendo que o baixista se aborrecera um pouco, Kuro balançou a cabeça:

– E veio pedir conselho pra mim?

– Mamãe e Jure chan tentaram me aconselhar.  Mas não deu certo.  Pensei em te pedir socorro.  Você se lembra que...

– Claro que eu lembro. – Kuro voltou a cortar meio rude. – Não posso ajudar você.  Eu não entendo nada de amor correspondido.

– Demo...

– Tem ideia do quanto é egoísta, Shibuya?

–Não é egoísmo, Kuro san...

– E é o quê...?  Pedir isso justamente pra mim?

– Você é o único que pode me ajudar.  Sabe como me sinto. – afirmou sem encarar o mais velho. – Quando não se está com quem a gente ama.

– Dói, não é?

– Hai.  Dói muito. – Jin respondeu diminuindo o ritmo dos passos.

– Esse é o preço.  Você acha que é correspondido. – Kuro logo entendeu a questão.  Ou pensou que entendeu: – Se apaixonou por alguém que não te ama...

Jin não vacilou antes de afirmar:

– Errado! O Jack me ama!!

Kuro quase sorriu:

– Jack...?  Asamura...? – Kuro não se importou de deixar o outro saber que conhecia sua banda muito bem.  Tinha dossiês interessantes de cada integrante arquivado na memória de um dos seus PCs.

– ... – se ainda estivessem na passarela era bem capaz do baixista se jogar de cabeça lá embaixo.  Ele tinha que prestar mais atenção antes de abrir aquela boca enorme.  Piorava quando o assunto envolvia o baterista da P”Saiko.  Jack tinha o dom de colocar Ikeuchi nas nuvens.

Mas Kuro tirou o mais novo de suas recriminações mentais:

– Até faz sentido.  E aquela entrevista que você deu... hum... suponho que Asamura pode até te amar.  Mas já parou pra pensar na situação dele?

– Como assim? – Jin ficou confuso.

– Uma pessoa normal dificilmente acharia conveniente se apaixonar por um otaku.

– A Neko chan...

– A Neko tem tanto de normal quanto você tem de descolado. – as palavras impiedosas do rapaz de óculos soaram muito seguras.  Jin teve que concordar com ele.  A garota era uma das mais estranhas do grupo, apesar de não ser otaku.

– Demo...

– Aposto que ele tem vergonha. – Kuro soou pensativo.

– De mim?! – o baixista revelou na voz todo o seu espanto.

– De você, um otaku.

– Não... o Jack não é assim. – Jin afirmou com toda a certeza do mundo.

– Então se você o ama e ele te ama, qual o problema?

Jin não respondeu.  Concordava com Kuro: era tudo muito simples.  Duas pessoas se amando.  Porque Jack relutava tanto em aceitar os sentimentos que lhe dirigia?

– Kuro san...?

– Nani?

O baixista parou de andar e fitou o outro que também parou de andar.

– Se você fosse uma pessoa normal e se apaixonasse por mim, assumiria seus sentimentos?

Ao ouvir a pergunta Kuro sorriu de leve.  Enfiou as mãos nos bolsos e voltou a caminhar sem pressa:

– Shibuya nunca vai deixar de ser um idiota.

– Ee...?! – Jin exclamou indignado.  Acelerou os passos até alcançar o mais velho – Espera.

– Às vezes concordo com seu irmão e acho que você é retardado.

– Não sou retardado.

– Então pensa comigo: se Asamura fosse um otaku e Shibuya fosse uma pessoa normal, assumiria seus sentimentos?

– Assumiria! – Jin nunca teve tanta certeza na vida quanto naquele momento, com aquela afirmação.

– Eis aí sua resposta, Shibuya.  Das duas uma: ou esse cara não te ama, ou tem vergonha do que sente.

– Ie... – Jin sussurrou – Não acredito que Jack seja assim.  Tem que haver outra razão.

– Então pergunte a ele. – Kuro sugeriu tranquilo.

– Nani?!

– Pergunte a Asamura qual a razão dele não assumir o que sente.  Seja direto e prepare-se para qualquer resposta.  Até uma que pode não agradar.  Essas pessoas nunca irão entender a verdade sobre a gente, Shibuya.

– A verdade...?

Kuro ergueu a cabeça e fitou o céu:

– Que a gente não sabe “viver”...

Ikeuchi respirou fundo.  Os dedos longos enroscaram-se nas alças da mochila retorcendo-as.  Subitamente era mais interessante observar o céu alto e cinzento de Tokyo, muito pesado de poluição.

– Viver dói... – Jin sussurrou.

– Ah, dói.  Um bocado.  E vai doer sempre, cada vez mais.  Pessoas só sabem ferir, Shibuya.  Querendo ou não, é tudo o que fazem.  Bem vindo ao mundo real.

– Por isso você nunca vai me dizer, não é?  Nunca vai me deixar entrar na sua vida... – Jin tentou não parecer magoado com aquilo, mas foi em vão.  Kuro era um de seus raríssimos amigos.  Queria que o tratasse com a mesma consideração – Depois de todos esses anos eu ainda não sei o seu nome.  E não sei quem é essa pessoa que te faz sofrer tanto...

Kuro quase riu.  Acabou dando de ombros:

– Você saber ou não, não fará diferença.  Esqueça.

– Se as coisas fossem diferentes...

– Mas não são.  Preciso ir. Ou você quer ocupar mais do meu precioso tempo?

Ikeuchi pensou um pouco.  Kuro não ia ajudá-lo.  Até tentara do seu jeito rude... intuiu que não iria além.  Enganara-se ao acreditar que o mais velho teria um conselho sábio.  Afinal, desde que aquilo acontecera Jin descobrira que Kuro sofria com uma paixão platônica.  Amava alguém em silêncio, e não era correspondido.

Fora bom rever o antigo companheiro, no entanto seu problema persistia.

– Arigatou. – Jin reverenciou levemente – Espero que não pare de dar notícias, Kuro san.

– Ei, espera aí, Shibuya!

– Nani...?

– O pagamento.  Você não achou que isso seria de graça, achou?

– Mas... você não fez nada! – Jin se amuou.

– Perdi meu tempo ouvindo suas lamentações.  Tempo é dinheiro.

Jin coçou a cabeça:

–Mercenário!  O que você quer?

Dessa vez o mais velho sorriu largo:

– Aqueles seus desenhos... você ainda os faz?

O baixista da P”Saiko riu divertido:

– Você está debochando de mim!

Dando de ombros, Kuro insistiu:

– Faça um pra mim.  Capricha.  Daí a gente marca um dia pra tomar um frapuccino e eu pego o desenho. – dizendo isso reverenciou de leve e deu meia volta.

Jin ficou parado observando.  Kuro era uma das figuras mais enigmáticas que já conhecera.  Escondia tudo sobre si, evitava as pessoas e não deixava que se aproximassem.  Também era um otaku cada vez mais introspectivo.  Como a maioria deles, evitava o desprezo que a sociedade nipônica lhes dirigia isolando-se, escondendo-se num mundo particular e inalcançável.  Trancando-se no quarto, nunca seriam feridos física ou psicologicamente.  Trancados em casa não havia preconceito, olhares reprovadores e julgamentos injustos.

O baixista balançou a cabeça.  Não era a solução que queria.  Não tinha vontade alguma de abandonar o contra-baixo ou a banda da qual fazia parte, muito menos todas as pessoas que conhecera graças à música.  Jack entre elas.

O baterista e líder da P”Saiko era um dos motivos mais fortes que tinha para querer continuar no mundo real.  Descobrira com ele um sentimento muito forte, chamado “amor”.  E não desistiria de tentar alcançar o coração de Asamura.  Mesmo que parecesse difícil, quase impossível.

Já tentara conselhos com praticamente todos que conhecia e tinha intimidade para pedir.  Faltava falar com Humiko san... talvez...

Nesse momento seu celular tocou.  Ficou surpreso ao reconhecer o numero do guitarrista ruivo:

– Moshi, moshi.  Tachi? Ano... Arata não está aqui.  Quer dizer, eu não estou no apartamento.  Eu acho que ele ia ao correio, despachar um presente para Hana chan. Hum... Hai, hai.  Eto, TACHI! – Jin chamou na hora que o companheiro ia desligar – Será que a gente pode conversar...?  Eu queria perguntar uma coisa...

Satisfeito, Shibuya ouviu Takeo concordando e o convidando para ir ao seu apartamento.  Ótima oportunidade para conversar a sério com alguém que entendia de conquistas.

 

Continua...

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