domingo, 10 de janeiro de 2010

Capítulo Um

Requiem in Prologue
Kaline Bogard

O começo...

Uma mala.  Uma mochila.  A expressão de profundo pesar.  Aqueles pareciam ser os únicos pertences do rapaz, quando chegara na casa dos tios.

Hayato estaria mentindo se dissesse que ficara feliz.  Não pela notícia de que sua casa teria um novo morador.  Mas pelas circunstancias de tão repentina mudança.  Os tios, que não tivera a sorte de conhecer, haviam falecido num incêndio que destruíra a casa onde moravam.  Seu primo estava na escola quando acontecera.

Ele tem um responsável legal.  O filho do primeiro casamento de Ikeuchi san.”, dissera o agente do governo que cuidava da guarda de menores.  Enquanto não encontravam Ikeuchi Saito, Jin teria que viver com os tios, únicos parentes vivos.

Passada a surpresa, Hayato sentira como se tivesse ganhado um irmão mais velho.  Tinha Hana chan, claro, sua irmãzinha confidente.  Mas era diferente.  Querendo mostrar suas boas intenções avançou um passo e pegou a mala das mãos do primo, que continuava parado no meio da sala, parecendo meio perdido.

“Okaeri.”, o moreninho saudou com um sorriso encantador.

O gesto foi suficiente para fazer Jin relaxar.  Ele sorriu agradecido.  E sentiu-se em casa.

oOo

Apesar de todas as diferenças logo a família estava adequada ao novo e exótico morador.  Jin era otaku e vinha de Tokyo.  Logo despertava atenção dos primos.

Os três passavam longas horas na sala ouvindo o mais velho contar as histórias incríveis de uma cidade grande.

Jin lembrava de todos os mangas que tinha no quarto.  E de como Trevas gostava de lê-los.

Hayato e Hana achavam que Trevas era o apelido de algum amigo.  Eles nem desconfiavam que se tratava do cachorrinho Yorkshire que também morrera no incêndio.

oOo

O quarto impecável de Hayato logo ganhava uma cara nova.  Essa era uma das poucas coisas que causava discórdia entre os primos.  Jin devia ter um pacto secreto com a baderna.  Por onde o otaku passava nada ficava no lugar.  Eram roupas espalhadas, um numero cada vez maior de mangas pelo chão, pôsteres de bandas pela parede e o absurdo abajur com forma de Pokémon, comprado há algum tempo pela Internet.

Aquilo despertava o deus da faxina que habitava o coração de Hayato.  Em “Dias do Horror”, como Jin batizara, o moreninho surtava, botando o otaku pra fora do aposento.  E Hana se divertia por horas, rindo do irmão vestido com um avental e um lenço na cabeça, cismado de arrumar tudo.

oOo

Jin tinha uma paixão absurda por fotografias.  Em momentos inacreditáveis a câmera surgia em sua mão como num passe de mágica, e lá estava ele a retratar todo e qualquer acontecimento.  Fosse engraçado, emocionante, inusitado.

Hayato adorava posar para fotos.  Sabia-se fotogênico e entendia da coisa, agindo de forma natural, às vezes sensual, diante das câmeras.  E, sem que ambos percebessem, o acervo de fotos já enchia incontáveis DVDs.

oOo

No colégio as coisas não eram ruins.  Ao contrário das cidades grandes, o fato de Jin ser otaku não trazia a hostilidade costumeira.  Ele despertava a curiosidade dos outros alunos, que o tratavam quase como se fosse de outro mundo.

As roupas coloridas demais nunca combinavam em nada.  E, talvez, aquele fosse o segredo do charme do garoto.

Olhar os primos juntos era sempre um contraste.

Hayato parecia impecável no uniforme alinhado, a bolsa estilo carteiro sempre dava a impressão de ser nova.  Ele cuidava da aparência de forma religiosa.  Os cabelos dia após dia com a aparência perfeita.  Agia de forma educada e cortes com todos, um dos preferidos dos professores. Era representante do segundo ano A e secretário do Grêmio do colégio.

Jin era o oposto.  O uniforme parecia sempre ter sido pisoteado, de tão amarrotado (por mais que a tia o passasse).  A gravata tinha tantos bottons que ficava praticamente oculta.  Os cabelos eram despontados e pareciam nunca ver um pente.  E ele era tão distraído que tirava as notas mais baixas do terceiro ano B.

Impossível duas pessoas serem mais diferentes.  E, ainda assim, todos que olhavam de fora tinham um único pensamento.  “Eles se completam.”.

 

O Meio

A medida que as semanas se passavam Jin enfiou na cabeça que devia arrumar um emprego.  E não houve argumento dito pelos tios ou pelos primos que o fizesse mudar de idéia.

Começou a lavar pratos em uma casa de lamen depois do colégio.  Quando a noite caia, todos os dias, Hayato ia se encontrar com o mais velho e juntos voltavam para casa, com Ikeuchi contando as incríveis aventuras de lavar e secar pratos; as roupas úmidas, pois era tão desastrado que espirrava água pra todo lado.

O moreninho apenas ouvia.  Ficava tão feliz por ver o primo superando a terrível perda.  Provavelmente por que Jin sentia que não estava sozinho na vida.  Havia os tios, Hana chan e Izumi.

oOo

Com o primeiro salário Ikeuchi convidou Hayato para tomar sorvete.  O dia estava lindo, quente e ensolarado.  O humor de ambos parecia ótimo e o sorvete estava delicioso.

Foram incontáveis fotos para imortalizar o que Izumi consideraria seu primeiro encontro.

Para todos os outros eram apenas dois primos saindo para curtir o dia.  Mas eles sabiam que não era exatamente aquilo.  Principalmente quando o otaku ousou um passo arriscado.

Aproveitando-se da proteção da toalha da mesa Jin esticou o braço e segurou na mão do garoto sentado ao seu lado.  Hayato sorriu de leve, fechando os olhos e aceitou que os dedos se entrelaçassem de forma carinhosa.

oOo

Foi por essa época que os planos começaram.  A vida até então baseara-se em estudar e estudar.  Estava na hora de pensar no futuro e em uma carreira.

Jin sonhava alto.  Juntava dinheiro pra comprar um contra-baixo novo.  E, um dia, entraria para uma banda que seria famosa.

Hayato incentivava. Concordava com a parte de ir para Tokyo.  Porém o moreninho desejava seguir a carreira de modelo.  Já movera alguns pauzinhos.  Enviara inúmeros books e fizera contato com sites confiáveis da Internet, sempre com supervisão dos pais, claro.

Eram noites amigáveis em que ambos se espremiam na cama de solteiro de um deles, iluminados pela luz mortiça do abajur e teciam um futuro não muito distante em que tudo daria certo.  Principalmente porque estariam juntos.

oOo

Hayato também arrumou um emprego de meio período.  Começou a trabalhar na biblioteca municipal organizando os livros.  Era algo leve que não atrapalhava seus estudos.  E, às vezes, tinha tempo para ler um ou outro livro nos momentos de menos movimento.

Com essa nova independência o moreninho decidiu que dividiria as despesas de seus encontros com o primo.

Logo rachavam os sorvetes, os milkshakes e os cappuccinos.

O que sobrava guardavam para o dia em que viajariam para Tokyo.  Sabiam que seria uma jornada difícil, mas não impossível.

oOo

Também foi nessa época que trocaram o primeiro beijo.

O festival da cidade estava lotado.  As pessoas se espalhavam pelas barraquinhas, se divertindo até o momento mais esperado da noite.

Jin e Hayato estavam próximos à porta do templo, observando os fieis que levavam suas oferendas.  Trajavam kimonos bem apropriados para a ocasião.

Quando o primeiro fogo-de-artifício explodira no ar, Ikeuchi já tinha a câmera nas mãos, pronto para registrar o hanabi.  Era lindo.

A imagem capturada era tão incrível que o otaku voltou-se para mostrá-la para o mais novo.  Com o movimento inesperado os rostos ficaram muito próximos.  Fechar os olhos foi para Hayato um gesto natural e instintivo.

Tudo o que Jin precisou fazer foi imitá-lo.  Naquela noite mágica, o selar de lábios também foi mágico.  E levou o relacionamento dos primos para um outro nível.

 

O Fim

A chegada de Ikeuchi Saito foi um choque.  Porém real.

O meio-irmão de Jin apareceu na cidade alguns meses depois e apresentou-se na residência da família de Izumi.

Explicou que estivera fora do país, envolvido em tramites legais das empresas do falecido pai.  Soubera da perda e voltara assim que possível.  Depois ficara preso por todas as medidas legais do caso.

Jin era filho legalizado de Ikeuchi Yura.  E o velho homem deixara a guarda do enteado para o filho legitimo, que vinha reclamá-la depois de todos aqueles meses.

Muito formal, pediu desculpas à família por tamanho inconveniente e incomodo.  Ofereceu-se para pagar as despesas que o caçula tinha dado, mas os tios do garoto recusaram.  Não fora incomodo algum, pelo contrário.

Hayato ficou desesperado.  Que espécie de irmão era aquele?  Não houvera troca de abraços, nenhuma amabilidade ou palavra de conforto.  Apenas os cumprimentos educados, um senso inegável de obrigação a ser cumprida.  Onde estava o calor humano?  O afeto?

Jin parecia assustado.  Nunca se dera bem com o mais velho.  O futuro era uma perspectiva sombria.  Mas os adolescentes não podiam fazer nada, a não ser aceitar o que os adultos lhes impunham.

A despedida foi de partir o coração.  Hana chan chorara tanto.  Não parecia aquela garota forte e decidida que apoiara o namoro secreto dos primos desde o princípio.

Triste, abraçou o otaku com forma, pedindo retidamente para que Jin não fosse embora.  Midori teve que interferir e afastar a filha com carinho, porém com firmeza.

Apesar da pressa que Saito parecia ter de partir Ikeuchi despediu-se apropriadamente dos tios e da priminha, agradecendo a acolhida e o carinho que recebera.  Prometeu que escreveria em breve e mandaria notícias.

Só não se despediu do primo.  Porque Hayato se trancara no quarto e se recusava a sair.

Foi escondido atrás das cortinas da janela que o moreninho viu quando Saito san guardou as malas do meio-irmão no porta-malas do carro junto com a mochila colorida de chaveiros e assumir a direção.

Jin, antes de tomar o lugar do carona, lançou um olhar na direção da janela, intuindo que o primo estaria ali.  Sorriu em uma silenciosa despedida.  Uma promessa muda de que não seria, aquele, o fim.

Hayato afastou-se da vidraça e encostou-se na parede, sentindo as forças lhe faltarem.  Deixou o corpo escorregar para o chão, onde permaneceu chorando baixinho.

Desejou que o primo ficasse bem.  Porque ele com certeza não ficaria.  Pelo menos por um longo tempo.

 

O novo começo

Hayato saiu da estação de Tokyo e respirou fundo.  Muito.

Sentiu-se assustado perante aquela multidão da capital que se movia como uma onda em várias direções.  Nunca vira tanta gente antes.  A não ser na televisão.

Leu o endereço no papel.  Ganhara uma bolsa da faculdade e iria dividir apartamento com mais duas pessoas.  Um tal de Ryuutarou san e um tal de Teruo san.

Tinha a empolgação total que seus vinte e um anos permitiam.  E ali estava ele, livre para tomar o rumo que decidisse e trilhar novos caminhos na sua vida.

Era decidido e sabia-se dono de força de vontade suficiente para realizar todos os seus mais secretos sonhos.  Sendo o mais profundo de todos reencontrar Ikeuchi Jin.  Seu primo e namoradinho da adolescência.

Naqueles cinco anos não houvera uma única carta.  Nem um e-mail ou uma ligação.  Não recebera absolutamente nenhuma notícia do mais velho.

Desvendar aquele mistério era um dos principais motivos de ter tido coragem de ir tão longe.

Respirando fundo, Hayato ajeitou a mochila nas costas.  Fez os dois chaveiros de plaquinha balançar.  Um deles era a foto em miniatura do hanabi em que Jin e ele se beijaram pela primeira vez.

Fez uma prece silenciosa, implorado para que tudo desse certo, antes de avançar destemido e embrenhar-se entre as pessoas que seguiam de um lado para o outro, ocupadas demais para prestar a atenção no moreninho recém chegado que iniciava ali uma nova jornada em sua jovem vida.

 

Fim

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